Na Argentina, Obama busca conter avanço chinês e dificultar integração regional, diz historiador
Para Leandro Morgenfeld, Obama tentará
posicionar Macri como referente de direitos humanos na região e assim
debilitar governos não alinhados aos EUA
Barack Obama e Mauricio Macri protagonizam nesta quarta-feira (23/03)
um encontro bilateral que não acontece há 20 anos na Argentina. Desde
que, em 1997, Bill Clinton (1993-2001) visitou Carlos Menem (1989-1999),
nenhum presidente dos EUA voltou ao país sul-americano em caráter de
visita de chefe de Estado.
A última vez que um mandatário dos EUA veio à Argentina foi em 2005, quando George W. Bush (2001-2007) participou da IV Cúpula das Américas, em Mar del Plata, de onde partiu sem consolidar a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), que seus antecessores tinham promovido na região durante a década de 1990.
Em meio ao aniversário de 40 anos do golpe de Estado que inaugurou uma ditadura militar na Argentina, em 24 de março, a visita de Obama foi criticada por organismos de direitos humanos. Para alguns, a presença do mandatário norte-americano em data tão sensível, quando seu país é acusado de patrocinar e promover a última ditadura militar (1976-1983), é uma provocação.
Barack Obama cumprimenta Mauricio Macri na Casa Rosada, sede do governo argentino, nesta quarta-feira
Para Leandro Morgenfeld, é também parte de uma nova estratégia, que busca posicionar Mauricio Macri como referente de direitos humanos na região e, como consequência, debilitar governos não alinhados aos EUA, como o venezuelano. O doutor em História e pesquisador do Conicet (equivalente ao CNPq brasileiro) é autor dos livros “Relações Perigosas - Argentina e Estados Unidos” e “Vizinhos em Conflito - Argentina e Estados Unidos nas Conferências Panamericanas”.
Em conversa com Opera Mundi, Morgenfeld explica como a aproximação entre os dois países pode afetar a economia da região com a transformação do Mercosul e a ofensiva contra o avanço chinês. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Opera Mundi: A última vez que um presidente dos EUA veio à Argentina foi em 2005, quando George W. Bush participou da IV Cúpula das Américas, em Mar del Plata. Naquele momento, os países da América Latina rejeitaram a proposta norte-americana para a criação de uma área de livre comércio no continente, a Alca. O que se pode esperar da visita de Obama, 10 anos depois?
Leandro Morgenfeld: Em outubro de 2015, depois de longa negociação secreta liderada pelos EUA, surgiu o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, nas siglas em inglês), que inclui 12 economias de Ásia, América e Oceania, sem a China. Juntos, seus integrantes (EUA, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Malásia, Brunei, Cingapura, Vietnã, Canadá, México, Peru e Chile) representam entre 35% e 40% do comércio internacional, logo, esse é um dos acordos de livre comércio mais importantes do mundo. Nenhum dos países do Mercosul faz parte dele.
Hoje, parte da política de EUA para a região tem a ver com conter o avanço chinês e impulsionar que os países se integrem ao TPP, então é óbvio que esse tema está na agenda do encontro bilateral entre Mauricio Macri e Obama.
OM: Quais poderiam ser as consequências econômicas para a região e para os países do Mercosul caso se concretize um acordo de livre comércio entre Argentina e EUA?
LM: As consequências podem ser uma debilitação do Mercosul ou a mudança no sentido do Mercosul. O bloco pode deixar de ser o motor de integração regional para recuperar o que se chamou de “regionalismo aberto” nos anos 1990, ou seja, pensá-lo como trampolim para algumas transnacionais latinas, que poderiam exportar mais. Em contrapartida, haveria cessão de controle do mercado interno. Nesse cenário, muitas pequenas e médias empresas da região teriam que competir com transnacionais dos EUA em meio a uma menor regulação estatal. Supor que um acordo de livre comércio é equiparável para economias tão distintas como as de EUA e Argentina ou qualquer país do Mercosul é não entender que essa assimetria define quem serão os ganhadores e os perdedores. Não é possível acreditar que uma empresa argentina possa ter melhor acesso ao mercado interno norte-americano por causa do TPP, salvo um punhado de 5 ou 6 empresas que já estão transnacionalizadas. Mas, sim, é possível pensar em empresas norte-americanas que tenham melhores condições para participar no mercado interno argentino.
Também pode abrir possibilidade de novas privatizações, talvez não como nos anos 1990, mas que a participação do Estado seja limitada. Ou provocar a desindustrialização nos países sul-americanos, com o avanço de empresas de capital norte-americano, e também piores condições para trabalhadores desses países. E não somente na região, há sindicatos dos EUA que se opõem ao TPP também, justamente por isso.
OM: É possível estabelecer um paralelo com o que foi debatido nas últimas visitas bilaterais de presidentes norte-americanos à Argentina?
LM: Nas últimas três visitas presidenciais dos EUA à Argentina estava na agenda a discussão de áreas de livre comércio. Quando George Bush (1989-1993) veio, em 1990, discutiu com Menem a iniciativa para as Américas, que tinha sido lançada pouco antes pelo presidente dos EUA, e depois virou a Alca. Quando Bill Clinton veio, em 1997, discutiu a Alca e negociou que a Argentina fosse a sede da IV Cúpula das Américas. Na época, havia um governo muito alinhado com os EUA, não se sabia o que ia acontecer nos anos seguintes.
A visita de George W. Bush, em 2005, foi especialmente para discutir a implementação da Alca e acabou sendo contraproducente. A Cúpula se realizou em Mar del Plata quando havia outro alinhamento político do governo argentino, já com Néstor Kirchner (2003-2007), e do Mercosul em geral.
OM: Como os EUA se adaptam à mudança no contexto político latino-americano dos anos 1990 para cá? É possível dizer que as intenções mudaram ou foi a estratégia de aproximação que mudou?
LM: Nos anos 1990 estávamos na imediata pós-guerra fria e, talvez como nunca antes, os EUA conseguiram subordinar os governos e os países latino-americanos. No entanto, essa subordinação não esteve isenta de conflitos. Levou à crise econômica e política do fim do século 20 na região e provocou uma série de levantamentos sociais e políticos, como o que aconteceu em 2001, na Argentina, a Guerra da Água, na Bolívia, várias rebeliões que derrubaram sucessivos presidentes no Equador ou o Caracazo, na Venezuela.
Isso abriu portas para o chamado “ciclo progressista”, que incluía desde governos de tipo bolivariano até governos reformistas do Mercosul. Isso também mudou o mapa político e permitiu que forças sociais construíssem ferramentas para se opor e derrotar o projeto hegemônico desenhado pelos EUA nos anos 1990, com a Iniciativa das Américas.
Esse projeto estratégico foi derrotado em 2005 e os EUA mudaram de estratégia, com alento a tratados de livre comércio bilaterais, como os que assinou com Colômbia ou Peru, para citar dois exemplos. Agora há a possibilidade de assinar mais um acordo para conter o avanço chinês na região. Ou seja, a possível incorporação argentina ou de outros países do Mercosul ao TPP seria funcional aos objetivos estratégicos de longo prazo dos EUA para a região. Afastar potências extra-hemisféricas, nesse caso a China, e dificultar o processo de cooperação política e de integração regional - mesmo com todas suas limitações - como os que aconteceram nos últimos 10 ou 15 anos.
OM: Muitos consideram o "Não à Alca" como um marco na integração latino-americana. Pode-se dizer que esses processos de cooperação regional se encontram debilitados hoje?
LM: Certamente. A crise econômica, a crise do preço das commodities, o arrefecimento do processo de crescimento econômico, a não diversificação da matriz extrativista, além de uma série de mudanças políticas contribuem para isso. É claro que há panoramas diversos e nem tudo é transferível de forma mecânica entre os países, mas desde os anos 1970 podemos observar na América Latina ciclos econômicos e políticos. Ditaduras militares e endividamento nos anos 1970, hiperinflação e crise da dívida em paralelo à restauração democrática na década de 1980, a aplicação de medidas econômicas em sintonia com o Consenso de Washington nos anos 1990. Já entre 1998 e 2005, houve uma mudança na América Latina, que viveu uma década de altíssimo crescimento e de coordenação política e, em alguns casos, integração como nunca havia sido visto antes sem que os EUA estivessem no comando estratégico. De 2013 para cá o segundo mandato de Obama coincide com a morte de Hugo Chávez e começa uma ofensiva dos EUA com outra estratégia, como a que estamos vendo de Obama em Cuba.
No entanto, essa política de distensão com Cuba não é aplicada à Venezuela. Há um ano, Obama assinou um decreto onde considera a Venezuela como uma ameaça aos EUA e o ratificou novamente há algumas semanas. Os EUA levam a cabo políticas de desestabilização de governos não alinhados da região, para além das conjunturas particulares de cada país.
E essas políticas têm sucesso, entre outras coisas, por conta da virada política argentina. Pela primeira vez na história, uma expressão de direita ou de centro direita chega ao governo pelas urnas. Isso provocou uma mudança ou um impulso a mais para a mudança política que acontece em todo o continente e creio que Obama vem ratificar essa liderança de Macri. Porque é a primeira vez que um governo não tão alinhado na região passa às mãos de um governo claramente alinhado, que define o eixo de sua política externa recuperar as relações com EUA e Europa Ocidental.
OM: De fato, o governo de Macri costuma dizer que "a Argentina está voltando ao mundo", como se o país estivesse isolado nos últimos 12 anos. É possível afirmar que a política externa do kirchnerismo levou a Argentina ao isolamento?
LM: De nenhuma maneira a Argentina estava isolada do mundo. Podemos gostar mais ou menos da política externa kirchnerista, mas é preciso reconhecer que a Argentina teve uma ampla participação política internacional. O país foi incluído no G20, participou de cúpulas dos BRICS, esteve em diferentes instâncias de coordenação política em nível latino-americano e, inclusive, teve relações muito fluidas com os EUA, aprovou uma lei antiterrorista na tentativa de diminuir os níveis de confrontação.
Analistas críticos da política externa do governo anterior apontavam para esse isolamento, para a falta de investimentos estrangeiros no país, ao contrário do Brasil, que os recebeu mesmo durante o governo do PT, que teve uma política econômica de maior continuidade em relação às políticas neoliberais de abertura ao capital estrangeiro, de metas de inflação, de política fiscal mais restritiva.
Para economistas liberais, a Argentina precisa abrir seu mercado interno, trazer investimentos, fazer empréstimos. E, para isso, não pode confrontar, deve ser o mais amigável possível. E foi isso que a chanceler Susana Malcorra e o próprio Macri declararam: que a política externa será “desideologizada”, “pragmática”, com vínculos com as principais potências. Nesse marco está o acordo com os chamados fundos abutre, que vai endividar a Argentina por muitos anos, e que busca “recuperar a confiança” e fazer com que haja mais investimentos.
No entanto, creio que é uma desculpa para estabelecer políticas de alinhamento com uma retórica mais aceitável em um país que tem tradição de uma política externa mais autônoma. Não se fala em “realinhamento”, sim em “relações amigáveis com todos”.
OM: Obama vai estar na Argentina durante o aniversário de 40 anos do golpe de Estado. Associações de direitos humanos do país criticaram a visita nessa data, já que os EUA são acusados de dar suporte político e financeiro à última ditadura. O que o senhor pensa sobre a data escolhida para o encontro bilateral?
LM: Há uma operação política na apropriação de conceitos-chave historicamente ligados a políticas progressistas, como “liberdade”, “direitos humanos”, “democracia” por um discurso que não esteve historicamente ligado a essas ideias. Um exemplo é apontar Macri como o defensor dos direitos humanos na região, ele que nunca havia visitado a ex-Esma [centro clandestino de detenção transformado em centro de memória pelo ex-presidente Néstor Kirchner], que alegou pouco tempo para receber organismos de direitos humanos quando assumiu o governo.
Vir à Argentina, que é um país reconhecido pelo julgamento de responsáveis do terrorismo de Estado da última ditadura militar, e utilizar a questão dos direitos humanos para atacar países não alinhados com os EUA é confundir, é utilizar de forma enviesada a democracia para atacar regimes políticos que não respondem aos interesses dos EUA.
Gostaria de recordar que nos anos 1970 o governo de [Jimmy] Carter (1977-1981) tentou estabelecer algumas sanções contra a Argentina, mas não tinha nenhuma política direcionada à ditadura de Pinochet (1973-1990), aliado estratégico dos EUA. Hoje, os EUA sustentam financeira e diplomaticamente um governo que foi produto do golpe de Estado em Honduras, enquanto a Venezuela, onde houve diversas eleições nos últimos anos, onde o oficialismo perdeu eleições, é sistematicamente atacado como um governo que não respeita os direitos humanos.
Ou seja, há um uso míope dos direitos humanos. Nos anos 1970 e agora também.
OM: Especialmente em um momento onde tentativas de destituição de presidentes eleitos por voto popular se fortalecem na América Latina, a aproximação entre EUA e Argentina sob o governo de Macri pode ajudar a fortalecer projetos políticos de direita na região?
LM: A situação política sempre pode se modificar, mas sem dúvida o triunfo de Macri deu impulso à oposição venezuelana nas eleições de dezembro. Era sabido que seria uma disputa acirrada, mas ninguém imaginava uma derrota tão folgada da direita. E isso tem relação, sim, com a mudança de época. Ninguém imaginava a derrota de Evo Morales no referendo sobre sua reeleição, pouco mais de um ano depois de ter sido eleito presidente com ampla maioria de votos. No Brasil, para além das novidades judiciais, uma ofensiva contra o governo do PT ganhou força desde o ano passado.
Nada disso implica um destino inexorável, porque sempre depende da correlação de forças políticas que podem ser construídas. Também nos EUA há um processo eleitoral bastante incerto, completamente diferente do cenário de um ano atrás.
Não sabemos o que pode acontecer com as relações entre EUA e América Latina se o defensor de políticas tão xenófobas como Donald Trump, que tem chances de ser o candidato republicano, for eleito presidente. Ainda que suas excentricidades fiquem de lado caso assuma como chefe de Estado no país norte-americano, também é uma novidade o que acontece por lá, que alguém que nunca teve cargos políticos chegue a ganhar a [eleição] interna de um dos principais partidos do país.
No entanto, não tenho dúvidas de que a visita de Obama se dá no marco dessa ofensiva em meio ao retrocesso dos processos de transformação social na região.
OM: Uma das promessas de campanha de Mauricio Macri foi intensificar o combate ao tráfico de drogas, que é uma questão a que os EUA prestam muita atenção desde os anos 1970. O que se pode esperar da relação entre EUA e Argentina no que diz respeito a esse assunto?
LM: A perspectiva de luta militar contra o narcotráfico defendida pelos EUA produziu uma descompensação em todos os países da América Latina que a aplicaram. É muito criticada e os EUA continuam a aplicá-la, novamente, com dois pesos e duas medidas. Serve de desculpa para avançar na penetração - no caso, militar - e violar a soberania dos países da região enquanto fala-se muito pouco de que a maior parte da cocaína que a América Latina exporta entra nos EUA com conivência das forças de segurança e das forças políticas do país norte-americano.
Além disso, a definição de que países estão mais permeáveis pelo tráfico de drogas, em muitos casos, está subordinada ao grau de alinhamento desse país aos EUA. Por exemplo, quando a Argentina restringiu a participação da DEA [Organismo para o Combate às Drogas dos EUA] nas tarefas de luta interna contra o narcotráfico, apareceu, no ano seguinte, no relatório feito pelo Departamento de Estado dos EUA como país mais permeável ao tráfico de drogas.
O atual governo prometeu combater o narcotráfico e vai fazer isso estreitando vínculos com os EUA, cooperando mais com os EUA. É preocupante quando vemos que Patricia Bullrich [ministra de Segurança argentina] viaja aos EUA para se encontrar com o chefe da DEA, do FBI. Isso indica o rumo das políticas que pensa em implementar e é preocupante. É preciso prestar muita atenção às formas de cooperação que a Argentina vai estabelecer com os EUA em um campo tão sensível quanto a segurança e as Forças Armadas.
A última vez que um mandatário dos EUA veio à Argentina foi em 2005, quando George W. Bush (2001-2007) participou da IV Cúpula das Américas, em Mar del Plata, de onde partiu sem consolidar a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), que seus antecessores tinham promovido na região durante a década de 1990.
Em meio ao aniversário de 40 anos do golpe de Estado que inaugurou uma ditadura militar na Argentina, em 24 de março, a visita de Obama foi criticada por organismos de direitos humanos. Para alguns, a presença do mandatário norte-americano em data tão sensível, quando seu país é acusado de patrocinar e promover a última ditadura militar (1976-1983), é uma provocação.
Barack Obama cumprimenta Mauricio Macri na Casa Rosada, sede do governo argentino, nesta quarta-feira
Para Leandro Morgenfeld, é também parte de uma nova estratégia, que busca posicionar Mauricio Macri como referente de direitos humanos na região e, como consequência, debilitar governos não alinhados aos EUA, como o venezuelano. O doutor em História e pesquisador do Conicet (equivalente ao CNPq brasileiro) é autor dos livros “Relações Perigosas - Argentina e Estados Unidos” e “Vizinhos em Conflito - Argentina e Estados Unidos nas Conferências Panamericanas”.
Em conversa com Opera Mundi, Morgenfeld explica como a aproximação entre os dois países pode afetar a economia da região com a transformação do Mercosul e a ofensiva contra o avanço chinês. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Opera Mundi: A última vez que um presidente dos EUA veio à Argentina foi em 2005, quando George W. Bush participou da IV Cúpula das Américas, em Mar del Plata. Naquele momento, os países da América Latina rejeitaram a proposta norte-americana para a criação de uma área de livre comércio no continente, a Alca. O que se pode esperar da visita de Obama, 10 anos depois?
Leandro Morgenfeld: Em outubro de 2015, depois de longa negociação secreta liderada pelos EUA, surgiu o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, nas siglas em inglês), que inclui 12 economias de Ásia, América e Oceania, sem a China. Juntos, seus integrantes (EUA, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Malásia, Brunei, Cingapura, Vietnã, Canadá, México, Peru e Chile) representam entre 35% e 40% do comércio internacional, logo, esse é um dos acordos de livre comércio mais importantes do mundo. Nenhum dos países do Mercosul faz parte dele.
Hoje, parte da política de EUA para a região tem a ver com conter o avanço chinês e impulsionar que os países se integrem ao TPP, então é óbvio que esse tema está na agenda do encontro bilateral entre Mauricio Macri e Obama.
OM: Quais poderiam ser as consequências econômicas para a região e para os países do Mercosul caso se concretize um acordo de livre comércio entre Argentina e EUA?
LM: As consequências podem ser uma debilitação do Mercosul ou a mudança no sentido do Mercosul. O bloco pode deixar de ser o motor de integração regional para recuperar o que se chamou de “regionalismo aberto” nos anos 1990, ou seja, pensá-lo como trampolim para algumas transnacionais latinas, que poderiam exportar mais. Em contrapartida, haveria cessão de controle do mercado interno. Nesse cenário, muitas pequenas e médias empresas da região teriam que competir com transnacionais dos EUA em meio a uma menor regulação estatal. Supor que um acordo de livre comércio é equiparável para economias tão distintas como as de EUA e Argentina ou qualquer país do Mercosul é não entender que essa assimetria define quem serão os ganhadores e os perdedores. Não é possível acreditar que uma empresa argentina possa ter melhor acesso ao mercado interno norte-americano por causa do TPP, salvo um punhado de 5 ou 6 empresas que já estão transnacionalizadas. Mas, sim, é possível pensar em empresas norte-americanas que tenham melhores condições para participar no mercado interno argentino.
Também pode abrir possibilidade de novas privatizações, talvez não como nos anos 1990, mas que a participação do Estado seja limitada. Ou provocar a desindustrialização nos países sul-americanos, com o avanço de empresas de capital norte-americano, e também piores condições para trabalhadores desses países. E não somente na região, há sindicatos dos EUA que se opõem ao TPP também, justamente por isso.
OM: É possível estabelecer um paralelo com o que foi debatido nas últimas visitas bilaterais de presidentes norte-americanos à Argentina?
LM: Nas últimas três visitas presidenciais dos EUA à Argentina estava na agenda a discussão de áreas de livre comércio. Quando George Bush (1989-1993) veio, em 1990, discutiu com Menem a iniciativa para as Américas, que tinha sido lançada pouco antes pelo presidente dos EUA, e depois virou a Alca. Quando Bill Clinton veio, em 1997, discutiu a Alca e negociou que a Argentina fosse a sede da IV Cúpula das Américas. Na época, havia um governo muito alinhado com os EUA, não se sabia o que ia acontecer nos anos seguintes.
A visita de George W. Bush, em 2005, foi especialmente para discutir a implementação da Alca e acabou sendo contraproducente. A Cúpula se realizou em Mar del Plata quando havia outro alinhamento político do governo argentino, já com Néstor Kirchner (2003-2007), e do Mercosul em geral.
OM: Como os EUA se adaptam à mudança no contexto político latino-americano dos anos 1990 para cá? É possível dizer que as intenções mudaram ou foi a estratégia de aproximação que mudou?
LM: Nos anos 1990 estávamos na imediata pós-guerra fria e, talvez como nunca antes, os EUA conseguiram subordinar os governos e os países latino-americanos. No entanto, essa subordinação não esteve isenta de conflitos. Levou à crise econômica e política do fim do século 20 na região e provocou uma série de levantamentos sociais e políticos, como o que aconteceu em 2001, na Argentina, a Guerra da Água, na Bolívia, várias rebeliões que derrubaram sucessivos presidentes no Equador ou o Caracazo, na Venezuela.
Isso abriu portas para o chamado “ciclo progressista”, que incluía desde governos de tipo bolivariano até governos reformistas do Mercosul. Isso também mudou o mapa político e permitiu que forças sociais construíssem ferramentas para se opor e derrotar o projeto hegemônico desenhado pelos EUA nos anos 1990, com a Iniciativa das Américas.
Esse projeto estratégico foi derrotado em 2005 e os EUA mudaram de estratégia, com alento a tratados de livre comércio bilaterais, como os que assinou com Colômbia ou Peru, para citar dois exemplos. Agora há a possibilidade de assinar mais um acordo para conter o avanço chinês na região. Ou seja, a possível incorporação argentina ou de outros países do Mercosul ao TPP seria funcional aos objetivos estratégicos de longo prazo dos EUA para a região. Afastar potências extra-hemisféricas, nesse caso a China, e dificultar o processo de cooperação política e de integração regional - mesmo com todas suas limitações - como os que aconteceram nos últimos 10 ou 15 anos.
OM: Muitos consideram o "Não à Alca" como um marco na integração latino-americana. Pode-se dizer que esses processos de cooperação regional se encontram debilitados hoje?
LM: Certamente. A crise econômica, a crise do preço das commodities, o arrefecimento do processo de crescimento econômico, a não diversificação da matriz extrativista, além de uma série de mudanças políticas contribuem para isso. É claro que há panoramas diversos e nem tudo é transferível de forma mecânica entre os países, mas desde os anos 1970 podemos observar na América Latina ciclos econômicos e políticos. Ditaduras militares e endividamento nos anos 1970, hiperinflação e crise da dívida em paralelo à restauração democrática na década de 1980, a aplicação de medidas econômicas em sintonia com o Consenso de Washington nos anos 1990. Já entre 1998 e 2005, houve uma mudança na América Latina, que viveu uma década de altíssimo crescimento e de coordenação política e, em alguns casos, integração como nunca havia sido visto antes sem que os EUA estivessem no comando estratégico. De 2013 para cá o segundo mandato de Obama coincide com a morte de Hugo Chávez e começa uma ofensiva dos EUA com outra estratégia, como a que estamos vendo de Obama em Cuba.
No entanto, essa política de distensão com Cuba não é aplicada à Venezuela. Há um ano, Obama assinou um decreto onde considera a Venezuela como uma ameaça aos EUA e o ratificou novamente há algumas semanas. Os EUA levam a cabo políticas de desestabilização de governos não alinhados da região, para além das conjunturas particulares de cada país.
E essas políticas têm sucesso, entre outras coisas, por conta da virada política argentina. Pela primeira vez na história, uma expressão de direita ou de centro direita chega ao governo pelas urnas. Isso provocou uma mudança ou um impulso a mais para a mudança política que acontece em todo o continente e creio que Obama vem ratificar essa liderança de Macri. Porque é a primeira vez que um governo não tão alinhado na região passa às mãos de um governo claramente alinhado, que define o eixo de sua política externa recuperar as relações com EUA e Europa Ocidental.
OM: De fato, o governo de Macri costuma dizer que "a Argentina está voltando ao mundo", como se o país estivesse isolado nos últimos 12 anos. É possível afirmar que a política externa do kirchnerismo levou a Argentina ao isolamento?
LM: De nenhuma maneira a Argentina estava isolada do mundo. Podemos gostar mais ou menos da política externa kirchnerista, mas é preciso reconhecer que a Argentina teve uma ampla participação política internacional. O país foi incluído no G20, participou de cúpulas dos BRICS, esteve em diferentes instâncias de coordenação política em nível latino-americano e, inclusive, teve relações muito fluidas com os EUA, aprovou uma lei antiterrorista na tentativa de diminuir os níveis de confrontação.
Analistas críticos da política externa do governo anterior apontavam para esse isolamento, para a falta de investimentos estrangeiros no país, ao contrário do Brasil, que os recebeu mesmo durante o governo do PT, que teve uma política econômica de maior continuidade em relação às políticas neoliberais de abertura ao capital estrangeiro, de metas de inflação, de política fiscal mais restritiva.
Para economistas liberais, a Argentina precisa abrir seu mercado interno, trazer investimentos, fazer empréstimos. E, para isso, não pode confrontar, deve ser o mais amigável possível. E foi isso que a chanceler Susana Malcorra e o próprio Macri declararam: que a política externa será “desideologizada”, “pragmática”, com vínculos com as principais potências. Nesse marco está o acordo com os chamados fundos abutre, que vai endividar a Argentina por muitos anos, e que busca “recuperar a confiança” e fazer com que haja mais investimentos.
No entanto, creio que é uma desculpa para estabelecer políticas de alinhamento com uma retórica mais aceitável em um país que tem tradição de uma política externa mais autônoma. Não se fala em “realinhamento”, sim em “relações amigáveis com todos”.
OM: Obama vai estar na Argentina durante o aniversário de 40 anos do golpe de Estado. Associações de direitos humanos do país criticaram a visita nessa data, já que os EUA são acusados de dar suporte político e financeiro à última ditadura. O que o senhor pensa sobre a data escolhida para o encontro bilateral?
LM: Há uma operação política na apropriação de conceitos-chave historicamente ligados a políticas progressistas, como “liberdade”, “direitos humanos”, “democracia” por um discurso que não esteve historicamente ligado a essas ideias. Um exemplo é apontar Macri como o defensor dos direitos humanos na região, ele que nunca havia visitado a ex-Esma [centro clandestino de detenção transformado em centro de memória pelo ex-presidente Néstor Kirchner], que alegou pouco tempo para receber organismos de direitos humanos quando assumiu o governo.
Vir à Argentina, que é um país reconhecido pelo julgamento de responsáveis do terrorismo de Estado da última ditadura militar, e utilizar a questão dos direitos humanos para atacar países não alinhados com os EUA é confundir, é utilizar de forma enviesada a democracia para atacar regimes políticos que não respondem aos interesses dos EUA.
Gostaria de recordar que nos anos 1970 o governo de [Jimmy] Carter (1977-1981) tentou estabelecer algumas sanções contra a Argentina, mas não tinha nenhuma política direcionada à ditadura de Pinochet (1973-1990), aliado estratégico dos EUA. Hoje, os EUA sustentam financeira e diplomaticamente um governo que foi produto do golpe de Estado em Honduras, enquanto a Venezuela, onde houve diversas eleições nos últimos anos, onde o oficialismo perdeu eleições, é sistematicamente atacado como um governo que não respeita os direitos humanos.
Ou seja, há um uso míope dos direitos humanos. Nos anos 1970 e agora também.
OM: Especialmente em um momento onde tentativas de destituição de presidentes eleitos por voto popular se fortalecem na América Latina, a aproximação entre EUA e Argentina sob o governo de Macri pode ajudar a fortalecer projetos políticos de direita na região?
LM: A situação política sempre pode se modificar, mas sem dúvida o triunfo de Macri deu impulso à oposição venezuelana nas eleições de dezembro. Era sabido que seria uma disputa acirrada, mas ninguém imaginava uma derrota tão folgada da direita. E isso tem relação, sim, com a mudança de época. Ninguém imaginava a derrota de Evo Morales no referendo sobre sua reeleição, pouco mais de um ano depois de ter sido eleito presidente com ampla maioria de votos. No Brasil, para além das novidades judiciais, uma ofensiva contra o governo do PT ganhou força desde o ano passado.
Nada disso implica um destino inexorável, porque sempre depende da correlação de forças políticas que podem ser construídas. Também nos EUA há um processo eleitoral bastante incerto, completamente diferente do cenário de um ano atrás.
Não sabemos o que pode acontecer com as relações entre EUA e América Latina se o defensor de políticas tão xenófobas como Donald Trump, que tem chances de ser o candidato republicano, for eleito presidente. Ainda que suas excentricidades fiquem de lado caso assuma como chefe de Estado no país norte-americano, também é uma novidade o que acontece por lá, que alguém que nunca teve cargos políticos chegue a ganhar a [eleição] interna de um dos principais partidos do país.
No entanto, não tenho dúvidas de que a visita de Obama se dá no marco dessa ofensiva em meio ao retrocesso dos processos de transformação social na região.
OM: Uma das promessas de campanha de Mauricio Macri foi intensificar o combate ao tráfico de drogas, que é uma questão a que os EUA prestam muita atenção desde os anos 1970. O que se pode esperar da relação entre EUA e Argentina no que diz respeito a esse assunto?
LM: A perspectiva de luta militar contra o narcotráfico defendida pelos EUA produziu uma descompensação em todos os países da América Latina que a aplicaram. É muito criticada e os EUA continuam a aplicá-la, novamente, com dois pesos e duas medidas. Serve de desculpa para avançar na penetração - no caso, militar - e violar a soberania dos países da região enquanto fala-se muito pouco de que a maior parte da cocaína que a América Latina exporta entra nos EUA com conivência das forças de segurança e das forças políticas do país norte-americano.
Além disso, a definição de que países estão mais permeáveis pelo tráfico de drogas, em muitos casos, está subordinada ao grau de alinhamento desse país aos EUA. Por exemplo, quando a Argentina restringiu a participação da DEA [Organismo para o Combate às Drogas dos EUA] nas tarefas de luta interna contra o narcotráfico, apareceu, no ano seguinte, no relatório feito pelo Departamento de Estado dos EUA como país mais permeável ao tráfico de drogas.
O atual governo prometeu combater o narcotráfico e vai fazer isso estreitando vínculos com os EUA, cooperando mais com os EUA. É preocupante quando vemos que Patricia Bullrich [ministra de Segurança argentina] viaja aos EUA para se encontrar com o chefe da DEA, do FBI. Isso indica o rumo das políticas que pensa em implementar e é preocupante. É preciso prestar muita atenção às formas de cooperação que a Argentina vai estabelecer com os EUA em um campo tão sensível quanto a segurança e as Forças Armadas.
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